Em julho de 2022 eu acordei com uma daquelas ressacas onde você diz “nunca mais eu bebo” e, diferente de todas as outras vezes, realmente não bebi mais. Se me permitem, voltarei mais um pouco no tempo pra contar melhor essa história: 19 anos, pra ser mais exata. O ano era 2005 quando comecei a beber e, confesso, escrevendo agora tive até que confirmar na calculadora pra ter certeza que era tudo isso mesmo. De fato, é. Eu tinha 13 anos e pais super-protetores, problema-que-não-é-problema que assola muitos de nós, filhos únicos. A puberdade chegou como uma possessão e me tirou do lugar de princesinha da família para o de rebelde, problema, estranha. Comecei a fugir de casa, matar aulas sempre que possível e a buscar por doses de líquidos que me desciam queimando o corpo. Quando me dei conta, passava todos os finais de semana misturando a cachaça ou a vodka da pior qualidade com o suco também da pior qualidade. Passa 4 anos e já estava entrando na faculdade de jornalismo, morando sozinha pela primeira vez, me achando incrivelmente adulta com toda a inocência prepotente que essa fase nos traz. Nessa época, além do álcool, um maço de marlboro vermelho me acompanhava quase todos os dias. Queria me ver como meus ídolos, como Bukoswki e Hemingway, escrevendo sempre com um copo e um cinzeiro cheio do lado. Isso me custou não só o pulmão e o fígado, mas também a memória.
Como alguém que sempre teve amnésia alcóolica, posso afirmar que não lembro de boa parte da minha juventude. Me sobrou alguns flashs da faculdade, das vezes que desviei do caminho das salas de aula até o bar que ficava ali nos fundos do campus, dos jogos de sinuca às 7 da manhã regados à doses puras de seleta, das noites em technicolor. Se tentar escavar mais, lembro de algumas festas, alguns bares, alguns encontros. Nem todas as memórias são ruins, mas quase todas são incompletas.
Tive a sorte de crescer num momento de mundo onde não existia redes sociais, onde as pessoas não se filmam e são filmadas como hoje. Acredito que esse seja um dos grandes fatores que afastou a geração Z do álcool, imagina saber como a sua noite realmente foi através de um vídeo viral no tiktok? Não, obrigada. Mas a sorte vira quando penso que ser mulher não é fácil em nenhum momento da vida ou da história. Foram várias as vezes que estive num risco maior por estar alcoolizada, várias as que se aproveitaram disso, várias as que eu mesma não respeitei os limites, várias as que eu acordei sem saber onde estava e me cobri de culpa por isso.
Entendi que tinha um problema mesmo aos 22 anos quando, após uma separação extremamente traumática, me vi bebendo mais do que nunca. Timidamente, consegui sussurrar o primeiro pedido de ajuda. Todos os dias ao sair de casa, me deparava com a Cruz Vermelha e na porta um aviso impresso sobre as reuniões do Alcóolicos Anônimos. Um dia criei coragem e entrei. Suava frio e a sensação era que meu coração ia sair de mim e ser atropelado em plena luz do dia na Av. Independência. Me perguntaram se eu tinha ido para as reuniões, olhei ao redor e só vi homens mais velhos sentados nas cadeiras organizadas em um círculo, disse que sim, mas menti afirmando que era por conta do meu pai (sendo que até hoje eu nunca vi o pobre homem virar uma gota de álcool que fosse). Eu era a única mulher e a única pessoa com menos de 30 anos naquela sala. Passei a reunião inteira ouvindo histórias terríveis de como aquele homens perderam família e casa por conta do vício, e saí com a sensação de que eu era uma menina mimada que apenas precisava aprender a beber direito, encarar a saideira com respeito ou qualquer coisa mais aceitável. Longe de mim querer criticar o trabalho primoroso do A.A. e do N.A., acredito e sei da diferença que essas organizações fazem na vida de qualquer pessoa passando por esse tipo de problema, mas ali e naquela hora, me senti assustada e sozinha.
A verdade é que todo mundo quer que você beba até que isso vire uma questão séria. A vergonha de achar que você não sabe fazer aquilo tão bem e dentro das normalidades quanto as outras pessoas é cortante. Eu rechacei a ideia de parar de beber por muitos anos por puro medo. O de não ter mais amigos, o de ser vista como fraca e, principalmente, o de não saber quem eu era sem o álcool.
Avançamos pra 2022, um dos piores e melhores anos da minha vida. Coisas de fim do tal retorno de Saturno, disseram. Mais um momento onde me vi saindo de uma relação traumática, dessa vez com uma ex-sócia e ex-amiga, o que me tirou também uma empresa e um trabalho muito amado. De novo, álcool como unguento pra todas essas feridas. Dores seguidas de arrependimentos num ciclo (quase) sem fim. Até que um dia eu acordei com uma daquelas ressacas onde você diz “nunca mais eu bebo” e, diferente de todas as outras vezes, realmente não bebi mais.
Confesso que seria mentira dizer que foi difícil parar de beber assim “do nada”. Não foi o corte da ingestão que se mostrou o mais desafiador. Quem não foi impactado com cenas como a de Mulheres Apaixonadas, onde a nossa gloriosa Vera Holtz interpretava a professora Santana, que longe das garrafas precisava virar frascos de perfume goela abaixo? Isso me assombrou por bastante tempo. Mas, por esse tipo de abstinência física o meu corpo não passou. Foi a social e emocional que me derrubou nos primeiros meses. Um dos medos se confirmou, eu não sabia quem eu era sem o álcool. Também, pudera, passei toda a adolescência e a vida adulta até então com essa muleta. Tive absolutamente todas as interações sexuais, desde o flerte até a cama, encharcadas pelos destilados e fermentados que encontrava (repito parte da história e aprofundo nesse sentido aqui na minha coluna na Revista ELLE). Só sabia reconhecer meus amigos em volta da mesa de um bar. Só me via sendo solta e divertida naqueles momentos, tão diferente do meu olhar sempre muito metódico e cansado, que até criei um alter-ego pra quando atingia certo grau etílico: Olívia. Eu literalmente trocava de nome, em busca de alcançar um outro eu longe da sobriedade.
Então, fiquei apática. Me achei chata pra caralho. Sem graça. Odiava quando a Olívia aparecia, muito pela ressaca moral, mas estranhei quando a expulsei por completo. Duvidei de mim, mesmo sentindo um alívio imenso em todo o meu organismo. O vazio que eu tanto busquei preencher com álcool ficou assim mesmo, vazio, sem nenhuma ilusão de ótica que pudesse tomar lugar. O primeiro ano foi confuso, pelo menos nesse sentido, pelo menos pra mim.
Agora já se passaram 2 anos desde a fatídica última ressaca. Dois anos de reencontro até quem eu realmente sou, às vezes nem tão divertida assim, às vezes a maior palhaça da rodinha. Após esses 24 meses, não vai ser exagero se contar que renasci. Olha isso, não me sinto mais só. E tem mais, me sinto infinitamente mais segura e lúcida. Acho até que vou fazer uma daquelas medalhinhas de sobriedade pra comemorar o tamanho da conquista, que não é pouca coisa não. Tem gente que acha a palavra alcoólatra (ou alcóolico) forte demais, mas a gente sabe quando tá doente, não importa o jeito e o nível, a gente sabe. Procurar ajuda e se cuidar é vital. Vou falar, as coisas melhoraram, ô se melhoraram. E a parte boa é que agora lembro de todas elas.
Para conhecer:
Mês passado estive em Paris, e confesso que um dos meus lugares preferidos foi a loja Le Paon Qui Boit, especializada em bebidas não alcóolicas. Eu parecia criança visitando a Disney pela primeira vez. O fato é, parei de beber por necessidade e não por gosto, ou seja, obviamente sinto falta de uma cervejinha gelada no final da tarde ou drinkzinhos refrescantes pra beber na laje de casa. Mas todos meus problemas foram resolvidos aqui (só nesse quesito, pelo amor, eu tô cheia deles). A seleção de vinhos sem álcool é inacreditável! Você sabia que isso existia? Nem eu. Tem tinto, branco, rosé, espumante (que eu comprei pra celebrar), mais levinhos ou mais encorpados, tudo ao gosto do freguês. A parte das cervejas foi a que mais me pegou, juro. Eu nunca vi tanta IPA, APA, Red Ale, e insira aqui qualquer variação de cerveja boa com 0% de graduação alcóolica. Fora os gins! Sim, os gins! Enfim, se um dia você tiver de bobeira em Paris e quiser ver de perto, apenas vá.
Para assistir:
Vai ser muito clichê se eu seguir o tema e indicar um filme relacionado? Antes de jogar o nome na roda: essa news não faz parte do proerd e eu não quero que você pare de beber se essa não for a sua vontade, ok? Cada um com o seu cada qual. Seguindo, enquanto escrevia não pude deixar de pensar no filme dinamarquês Druk, que me tocou profundamente quando foi lançado e ganhou justamente o Oscar de melhor filme internacional em 2021. Ele conta a história de um grupo de professores que decide entrar num experimento social bebendo pequenas doses diárias de álcool antes do trabalho. É tenso, bonito, pesado, divertido e honesto.
Para ler:
Agora sim, fugindo um pouco das linhas etílicas ou abstêmias, a Editora Ubu me enviou um livro que já era objeto de desejo, e eu preciso repassar a palavra dele aqui. O nome é O Prazer Censurado - Clitóris e Pensamento, escrito pela filósofa francesa Catherine Malabou, e aprofunda justamente a falta de aprofundamento, seja médico ou social, do único órgão no corpo que tem como função apenas gerar prazer: o clitóris. E tem cupom de frete grátis, viu? Só digitar PRAZERSEMFRETE na hora de finalizar seu pedido no site da Ubu.
*Atualizando outro cupom prazeroso: agora você pode pedir os lubrificantes e excitantes mais legais do mercado com meu novo cupom LUBSCLARIS10 disponível no site da Lubs. Além de poder conferir nosso conteúdo quinzenal gratuito, o Lubs Education, aqui no instagram.
Obrigada pelas 1600 presenças aqui! Isso é coisa demais e me deixa feliz de um jeito realmente imenso.
Com muito amor e taças tilintantes,
Claris.
Essa newsletter veio na melhor hora, Claris. Faz um tempo que te acompanho e lembro quando você compartilhou que tinha decidido parar de beber. Tenho tentado o mesmo há muito tempo, mas sempre falho, ainda mais depois de um ano repleto de dates extremamente alcoólicos e amnésias frequentes. Ou até mesmo rolê com amigos - triste não lembrar das piadas e momentos engraçados que todo mundo comenta no dia seguinte. Só que depois de um final de semana regado à seleta, decidi tentar a ficar pelo menos um mês sem beber e ver como iria me sentir na presença dos outros sem 'lubrificação social'. Tive meu primeiro final de semana completamente sóbria, mesmo que as pessoas ao meu lado não estivessem. E cara, foi muito bom acordar no dia seguinte sem me sentir um lixo, e ver que sou capaz de me divertir simplesmente existindo ali. Uma coisa que as pessoas precisam saber é que não é necessário beber todos os dias pra ter um 'problema' ou 'questão' com álcool. O fato de você beber como um instrumento para conseguir vivenciar uma situação ou uma companhia, já põe em ficha que tem algo de errado ali - seja em você ou na relação com o outro. Aproveito para reforçar o que você disse, de tirar o peso da palavra 'alcoolatra'. Qual o problema de termos um problema? Todos nós temos vícios e escapismos. Conviver o tempo todo com a nossa mente (e com o mundo) é realmente difícil, mas não podemos desistir de buscar meios menos nocivos de lidar com nossas angústias e de entrar em contato com nosso eu.
Gente, que relato incrível: vulnerável, poético, visceral e esperançoso ao mesmo tempo. Destaque para as referências às reuniões de A.A., à Vera Holtz e à Olivia que realmente devia ser inebriante, mas estava ocupando um espaço que não era dela.