“As garras da felina me marcaram o coração, mas as besteiras de menina que ela disse não”. Já tem um bons anos que essa frase escrita por Caetano Veloso para a atriz Zezé Motta (erroneamente atribuída à Sônia Braga, que recebeu “apenas” a música Pecado Original como homenagem) alugou um belo dum triplex aqui dentro. Besteiras de menina. O que seria besteiras de menina? Tento entrar na mente de Caetano e puxar na memória a figura de Zezé. O que ela pode ter dito de tão bobo assim?
Isso virou meu império romano. Que porra de besteiras foram essas?
Óbvio, isso não ocuparia um lugar monumental na minha cabeça -já cheia o bastante- se não fossemos ensinadas a buscar aprovação masculina constantemente. Por muito tempo, meu principal medo (além de cair de moto e me ralar) era ser vista como insuficientemente inteligente por homens como Caetano. Voltando à musica Tigresa, a forma como ela me foi apresentada também ajuda a entendermos melhor como as palavras de um homem impacta na vida de uma mulher, mesmo que ela não seja necessariamente heterossexual. A tal canção de 1977 me chegou através de um professor com quem mantive um “romance secreto” (e bota aí muitas aspas, porque todo mundo sabia mas a gente fingia que não), junto de um “lembrei de você”. Se você também foi uma jovem piranha viciada em seduzir, as chances de um homem mais velho já ter te mandado essa música são altíssimas.
Como vocês já devem ter percebido, eu falo muita besteira. Mas sendo uma verdadeira fã de Caetano, sei que ele fala tanto quanto eu. O que realmente me incomoda é o “de menina”, até porque nessa falácia eu mesma já caí milhões de vezes, como já contei anteriormente. E a alma inquieta clama por um aprofundamento nesse tema a ponto de cogitar me contradizer aqui.
Então, será que a gente não acabou caindo numa versão moderninha e cirandeira da fala da ex-ministra Damares Alves, onde ela grita com uma loucura no olhar capaz de despertar inveja em qualquer intérprete do Coringa que “menino veste azul e menina veste rosa”?
Digo isso porque é quase 2025 (sim, aceite) e a gente ainda insiste em dividir o mundo entre atividades de homens e atividades de mulheres. E com "a gente”, quero dizer nós da esquerda mesmo (se você curte o Pablo Marçal e tá lendo essa news, preciso te pedir pra ir caçar seu rumo lá na putaqueopariu), não só o tiozão do zap que acredita em “kit gay” e “doutrinação de gênero”.
Durante esse belíssimo vórtex que foram as Olimpíadas, ver mulheres liderando esportes vistos como masculinos finalmente me devolveu o brilho no olhar. Marta, nossa jogadora eleita a melhor do mundo pela Fifa (tá bom, querida?), já contou sobre ser impedida de se juntar no futebol dos amiguinhos durante a infância justamente por 1) isso não ser coisa de menina e 2) ela ser infinitamente melhor que eles.
Aí começo a encucar com as minha atividades e hobbies. Quando faço cerâmica ao lado de 6 senhoras sou mais feminina? Quando me torno a melhor aluna iniciante do clube de tiro (e possivelmente a única que não é bolsonarista) automaticamente também me torno uma mulher masculina? Quando eu digo que não gosto de ler ficção (aparentemente isso virou uma demanda), viro persona non grata da feminilidade? Nas mãos de quem a gente deixou essa régua?
E aqui vai uma confissão (que talvez seja óbvia pra quem me segue no instagram, além de desinteressante): eu realmente gosto daquelas correntes bobinhas e cafonas de stories, onde você conta mais sobre gostos ou quesitos pessoais. Participo de quase todas, mesmo sabendo que em breve sairá uma versão daquele vídeo onde a Maria Homem diz “não precisa, né gente? isso aí é uma onipotência narcísica, uma fantasia, etc.” e isso surtirá efeito, me deixando levemente envergonhada por ter entrado na onda. Mas o que pipocou recentemente entre muitas das mulheres que acompanho foi o “I'm just a girl”, onde você colocaria ali 6 fotos que te representassem como apenas uma garouta 💅 Dentre muitos compartilhamentos de flores, sapatos, romances e maquiagens, fiquei pensando “o que me coloca no lugar de just a girl?” e o que saiu foi isso: minha ótima mira, uma cerveja amarga sem álcool perfeita, vibradores, livro sobre masturbação, minha calcinha preferida escrita “I love sluts” e o Anthony Bourdain. Tudo besteira, mas tudo também muito livre pra ser de quem se identificar, apesar do gênero.
Pensando também no meu histórico esportivo, que sempre foi catastrófico e patético, vejo que só consegui pegar gosto quando tinha alguma violência envolvida. Boxe, krav maga, muay thai, taekwondo e, agora após ser impactada (leia-se ter se apaixonado de maneira obsessiva) pela coreana Kim Yeji, tiro com pistola. E aí que me vem uma pergunta sincera: DA ONDE que tiraram que era da natureza feminina ser delicada? Pensa bem, num lugar biológico de pessoas designadas como sexo feminino ao nascer (podendo ser mulher ou não), a gente passa pelas experiências físicas mais brutais e viscerais possíveis. Cachoeiras de sangue todos os meses, a possibilidade de, literalmente, expelir outro ser humano pela própria vagina, a existência de um órgão feito apenas para possibilitar orgasmos, montanhas russas hormonais completamente insalubres e por aí vai. Não existe nada delicado na nossa existência.
O que me faz lembrar da querida Thelma Schoonmaker, montadora e editora dos filmes do Martin Scorsese há 44 anos. Ao ser indagada algo bem imbecil como “mas como uma mulher tão gentil pode montar os filmes tão violentos?”, ela respondeu:
Tudo isso pra dizer que devemos abraçar nossas besteiras, mas se atentar pra não sermos convencidos por esteriótipos limitantes. Nem toda mulher só vai pensar em macho e sapato que nem uma Carrie Bradshaw da vida. É de menina gostar de várias coisas que não vão atender essas expectativas. Flores e romances não precisam necessariamente ter essa separação, nem serem rebaixados por conta de uma fragilidade hipotética.
Tudo isso pra dizer: vai explorar, gata! Atravessa essa linha imaginária que nos cerca. Você também, caro leitor, vai tentar um curso de bordado, uma aula de dança, pegar uma receita de confeitaria na internet. As cores são bem mais vastas e brilhantes que só azul ou rosa.
Para assistir:
Tenho gritado aos quatro ventos “assistam Motel Destino” e aqui não vai ser diferente. Esse filme é um thriller-erótico dirigido pelo meu conterrâneo Karim Aïnouz e ali você vê o puro suco do Ceará, com as praias, os forrós e as cenas que dançam entre a tensão e o tesão e te puxam sem dó pro dois pra lá e dois pra cá. Tem triângulo amoroso, fuga, motel, papoco, e trilha sonora 10/10. Fiquei obcecada? Claro, e espero que vocês fiquem também.
Para ler:
Recentemente participei de uma matéria no Jornal O Globo, onde falei um pouco sobre as ciladas do conceito de virgindade, sobre como essa é uma construção social bem datada e até dividi minhas próprias descobertas. Vale a leitura:
Virgindade: conceito de 'primeira vez' não é mais o mesmo;
Para Testar:
Fiz uma curadoria de vibradores que possuem boa qualidade, são recarregáveis e custam até R$ 300,00. O vídeo completo tá aqui:
Um xêro, desculpem o atraso (agosto realmente foi o mês do desgosto, mas finalmente passou) e fiquem com ela:
“Com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher
Que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor
E espalhado muito prazer e muita dor”
não canso de aprender contigo, muito obrigado minha amiga querida ❤️
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